terça-feira, abril 10, 2007

10 de abril de 2007 - TERÇA-FEIRA

Devo dizer que se alargaram os horizontes de minha ilha, o mar não é mais intransponível e acabaram-se as garrafas. Há um parque em frente à janela do quarto, diante da qual há uma imensa árvore, maior do que o próprio prédio e, mais além, outras tantas árvores, por entre cujos troncos gosto muito de passear, sobretudo à noite, que é quando reina o silêncio, e a solidão é tão mais digerível e palpável.
A uns duzentos e quinze passos há a estação do trem que me leva para o trabalho e me traz toda noite de volta para casa. Da sacada do apartamento posso vislumbrar o salpicar de construções de novos edifícios, que relegam ao esquecimento a cara que o bairro tinha há vinte anos. Por trás das construções que formam como que uma muralha, um céu estrelado sempre me espia em silêncio, compartilhando o silêncio dele com o meu. Às vezes uma lua passeia o céu, às vezes um céu passeia meus pensamentos.
À esquerda vejo a padaria, o posto de gasolina, postados diante da avenida que sobe para uma parte mais alta do bairro. Caminhando essa avenida, há uma farmácia, um açougue, um mercado, a pizzaria de meus jantares preguiçosos, o salão onde corto o cabelo, a academia de balé. Há a lembrança da casa e dos apartamentos em que morei. No fim dessa avenida há outra avenida, muito mais longa. Do ponto de confluência dessas duas avenidas, virando à esquerda, há um outro mercado, mais adiante uma outra padaria. E, ao virar à direita, há a agência do correio, que por ora tem me dispensado o uso das garrafas.
Não posso dizer com isso que não sou mais um náufrago, só por não habitar mais uma ilha deserta. Sou um náufrago ainda em meio a um mar de gente, por trazer no meu íntimo todas as ilhas desertas do mundo.
Meu ser tragou com voracidade o mar imenso e, nesse ato, todas as distâncias se anularam como num vôo da imaginação.
Restam-me apenas as palavras desse e de tantas cartas, que marcam profundamente, e ao mesmo tempo, minha ligação e o desligamento com o outro.
Não basta ser apenas um náufrago. Então eu me faço um náufrago, a todo instante, por livre deliberação e estrita necessidade de meu espírito.
O mar que é o mundo é por demais inexplorado para eu me perder nele impunemente.
Deixo, assim, essas cartas como um sinal para ser localizado, no farol do qual brotam minhas palavras iluminadas. Para poder ser sempre ser encontrado.
E, uma vez encontrado, para ser conhecido e reconhecido por aqueles que sabem ler mapas. Essas pistas custam-me muito de uma vida que não vem a ser lá grande coisa.
As cartas ensejam esse encontro e essa proximidade com o estar perplexo com tudo o que há em volta. Como que se o mundo tivesse sempre que ser redescoberto e renovado, como se esse redescobrir pudesse sempre me trazer o novo.
Não vivo sem o que escrevo e nem escrevo sem o que vivo. Uma vida é uma carta que se escreve uma página a cada dia, um parágrafo a cada hora, uma palavra a cada instante. E eu vivo o que escrevo antes de escrever. E escrevo o que vivo, depois de viver.
Se as cartas te encontram, eu não sei. Sei que me encontro nelas. Se de algum modo te tocam, também não sei. Eu me sinto tocado por elas (as cartas e as palavras e a vida), com a devida emoção e com a preferível comoção. Comover-se é mover-se com tudo aquilo que se faz e se sente, com tudo aquilo com que se sonha.
Escrevo essas cartas como que para atestar essa incapacidade diante do indizível, essa ilusão de eternizar os dias em cada página. Como uma necessidade vã de pintar um retrato tão mal acabado do que não podemos saber que somos, que já é saber o que somos: o que não sabemos que somos.
Observadores das marés do tempo no mar da eternidade, em nossas ilhas desertas, somos todos náufragos.