quinta-feira, setembro 27, 2007

Controle

Um vendaval que entra por todas as janelas
Entreabertas, sempre entreabertas, o descuido muito bem cuidado
Uma pessoa que sai por uma porta, que nunca se fecha
Para uma outra sair por essas portas sempre abertas
Portas e janelas e seus trincos, a vida tem tramelas
E cada momento uma chave que nunca guardamos

Tudo tem controle, abre e fecha, portas e janelas, trincos e tramelas
Pessoas que entram e saem e nos carregam as chaves
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

O coração aos saltos, o rubor queimando as faces
O frio no estômago e a respiração disparada
A mão que sua sem pegar na mão que não é sua
O momento que se esgota tão rápido e não se repete
Essa facilidade de se perder em palavras tão ensaiadas
E dizer tudo quando não se quer dizer nada

Tudo tem controle, abre e fecha, o coração vazio, o tremor nas mãos
E a boca aberta a vomitar palavras, a chance que num momento escapa
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Um sonho que se sonha assim sem cerrar os olhos
Lábios que se tocam suavemente até o romper da aurora
Os corpos e seus encontros e desencantos sempre aos cantos
Mãos que tocam hesitantes o que nunca vão segurar
Deitar-se sobre as estrelas e nunca mais adormecer
Entregar-se às madrugadas e nunca mais morrer

Tudo tem controle, abre e fecha, os olhos e os sonhos que virão
Mão que não seguram, noites não dormidas, morrer de madrugada
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

O porvir de uma certa tristeza renitente já tão conhecida
Existir precariamente em mundos sempre assim tão inóspitos
Construindo vãs realidades com seus momentos impenetráveis
Não ter a mínima certeza sobre qual seja o próximo passo
E não ser capaz de caminhar senão em fuga desesperada
Busca desenfreada, procura inútil, espera interminável

Tudo tem controle, abre e fecha, verdades, buscas e esperas
Certezas precárias, fugas intermináveis e vãs realidades
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Paixões avassaladoras que nos invadem sempre na hora errada
Penúria mãe de todo amor e expediente o pai que não temos
Olhar que busca luz de outros olhos mas não sabe o que dizer
Pôr-se preso por vontade própria e não saber o que fazer
Esse suspirar pelo que não possuímos que queremos que nos possua
E esse se fazer vazio para sentir-se vazio para algo que nos faça repletos

Tudo tem controle, abre e fecha, paixões e amores e as horas
Saber o que dizer e fazer, o vazio e a vontade e os expedientes
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Ver-se sozinho em mais uma noite estranha e tão conhecida
E uma previsível e hostil madrugada que avança sem pedir licença
Trazendo a melancólica incerteza inaceitável de um outro amanhecer
Que abre as portas de todos os medos, de todas as jaulas e de todos os infernos
Não ser mais capaz de sentir-se preso a qualquer ambiente
Não fazer parte de nenhuma paisagem e nem de nada no mundo

Tudo tem controle, abre e fecha, todas as portas da madrugada
Os infernos, as jaulas e os medos, o amanhecer da incerteza
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

A espera diante das horas que passam certas e intermináveis
A angústia que nos enlaça em todas as chances desperdiçadas
O não dizer, o não sentir, o não fazer, o não poder, o não querer
O silêncio, sempre o mesmo silêncio a devorar todas as palavras
A dúvida, a inquietude, o revolver-se no leito a noite inteira
Para o amanhã trazer todo o desconcerto do amor desconsertado

Tudo tem controle, abre e fecha, as horas, angústias e silêncios
E as palavras devoradas pelo silêncio como chances desperdiçadas
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Expor a alma, abrir o coração, derramar todo o sentimento
Entregar-se irracionalmente ao mais impossível amor
Aceitar toda indômita paixão como livres e selvagens
Entender o inesperado e o insuspeitado e o revelar-se do absurdo
Viver como se cada momento fosse único e interminável
E saber esperar pela morte como quem espera o amanhecer

Tudo tem controle, abre e fecha, a alma e o coração, a vida e a morte
O único e interminável momento à espera do absurdo amanhecer
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Amar aquilo que não pode ser tocado
Desejar o que não pode ser possuído
Reviver tudo o que já foi esquecido
Buscar o que não pode ser alcançado
Refazer aquilo tudo que foi destruído
E recomeçar o que nem tinha terminado

Tudo tem controle, abre e fecha, o que se toca e não se possui
O que se esquece e não mais alcança, o que se destrói
O que se refaz a cada dia e nunca se vê terminado
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

Tudo tem controle, abre e fecha, até mesmo o descontrole
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle
Descontrole o controle! Você pode decidir ter o descontrole sob controle
Controle o descontrole! Você pode decidir ter o controle sob descontrole
Tudo tem descontrole, abre e fecha, até mesmo o controle

Tudo tem controle, abre e fecha, esse e todos os jogos de palavras
O abrir e o fechar, o clamar e o calar, o imenso silêncio
As verdades sobre todas as realidades, relativas dores
O que vamos dizer depois e fazer amanhã, o que vão pensar
Qual o medo que gera todos esses nossos medos irmãos dos segredos
O outro lado da efêmera vida eterna onde vemos a máscara de deus
Olhando num espelho quebrado os olhos que me olham e não são meus
Tudo tem controle, até o descontrole
Controle o controle! Você pode decidir ter o controle sob controle

São Paulo - 04/05/2005 – 09:48

Virar-se do avesso

Virar-se do avesso e expor a alma
Nua e crua e ainda assim pura
Sem o medo da verdade
De uma noite caindo
De andar de madrugada
E de uma aurora rompendo
A nossa ilusão, noturna, como a lua negra
Que não vemos, mas está lá
Iluminando nossos passos
E confundindo nossos caminhos

Virar-se de lado e tentar não dormir, nunca mais
Os passos da madrugada não conhecem a estrada
E a estrada não trilhada não nos leva a nada
Só os descaminhos nos fazem voltar
Aos mesmos lugares que desconhecemos
E aos mesmos rostos, ao mesmo tempo estranhos e conhecidos
Fugindo inutilmente de todos os espelhos
De nossos temores mais infundados
Do porvir de uma aurora que seja a última
E de uma coragem que se fundamenta na espera

Virar-se de lado e dar de cara com mais um espelho
Ver na máscara da vida a face da morte
A pintura de todas as covardias com tintas de ousadia
Procurar em vão um canto no mundo onde haja silêncio
Onde a escuridão esconda a multidão de rostos
Um labirinto onde nenhum passo faça sentido
Uma inexistência de caminhos e estradas
Estar dentro de uma floresta que não tenha entrada

Virar-se de lado e ver-se em mais uma noite
Os mesmos passos em outras madrugadas
A aurora vindoura, será agora?
A aurora bem-vinda, será a última?
Todos os pensamentos que se esgotam
E todas as angústias que sufocam
Toda uma tristeza horrivelmente eterna
Todo o desespero certamente incontido
Como as lágrimas irrompidas na solidão

Virar-se de lado e ver-se despido de caminhos
E despossuído de todos os passos
Ver-se no espelho sem mascara e sem rosto
Alma, uma alma que transborda todos os corpos
Luz, luz que escapa sem domínio
E sem o menor escrúpulo
E ouvir todas as vozes de seu próprio silêncio
E todos os sons vazios da madrugada
Estar imerso nessa imensidão de nada
Nada! Nada! Nada!

Virar-se de lado e ver-se terrivelmente sozinho
E calado um segundo antes do grito inevitável
Uma eternidade antes de todo o fim
Dessa mais absurda espera
A última aurora, será agora?
A aurora vindoura, será a última?

São Paulo - 26/04/2005 - 15:39:11

quinta-feira, setembro 20, 2007

O que há?

O que há?

Há uma porta aberta
E uma janela fechada
Há um medo apenas
Uma vida apenas
E uma morte apenas
Há um só tempo
Chamado eternidade
Não há passado
Não há futuro
E nem há presente

Há a existência somente
Um olhar perdido no espelho
Há somente a inconsciência
E todos os sonhos confusos
Há somente passos e não caminhos
Há somente silêncio e não há poesia
Há tudo de imaterial e intocado
Há espíritos sobre as águas
Há dúvidas e não ciência
Há perguntas sem respostas

Há apenas uma voz interior
Que nos chama para fora
Um olhar perdido na imensidão
Uma lágrima apenas, furtiva
Para todas as dores do mundo
Há somente a respiração ofegante
A corrida frenética na caçada
Há sangue quente nas mãos
E o não saber se caçamos
Ou se estamos sendo caçados

O que mais há?

Há somente um grito no escuro
A angústia e o suor nas faces
Há apenas uma noite mal dormida
Uma madrugada que avança
Há somente um dia que não chega
Uma porta que dá em outra porta
Milhões de portas diante do abismo
Há profundezas sem fim
E somente asas partidas
Há um vôo no infinito

Há somente um silêncio aterrador
Apesar da vontade de não calar
Há apenas a palavra contida
Cativa desse silêncio absurdo
Há poemas mortos, muitos
Há poesia renascida das cinzas
Há somente tristeza, toda
Há incerteza do sorriso
Há esperanças enterradas
Um deserto de cruzes fincadas

Há mães velando quartos vazios
E pais embalando berços quebrados
Vidas inteiras sem história
Tanta gente sem memória
Há apenas um lado, só um lado
O lado de lá que anula o lado de cá
Há tanta solidão na multidão
Tanta gente falando com as paredes
Há somente o horror humano
De não ter mais para onde ir

O que ainda há?

Há duas mãos cobrindo o rosto
Há o temor de encontrar
O receio de ver, de poder ver
Há hesitação em cada olhar
Uma renúncia atroz de voltar atrás
Há a incapacidade de se refazer
Há uma floresta dentro da floresta
E mais uma noite por cair
Há o que não se pode recolher
Mil pedaços do que se desfez

Há somente uma quietude imponderável
Uma tristeza que espreita os passos
Mistura-se à melancolia dos momentos
E torna-se angústia no passar das horas
Há essa vontade de ficar jogado no chão
E derramar de vez todas as lágrimas
E libertar enfim todos os gritos
Expurgar todas as possíveis dores
Esquecer para sempre todo o sofrimento
E matar de uma só vez todos os amores

Há apenas esse canto espalhado no ar
Essas palavras que nunca vão voltar
Há apenas outros cantos que não vão soar
E tantas outras palavras que não irão brotar
Há apenas o desconhecido a nos guiar
O vazio do infinito que nos contém
Há tão somente meus olhos sem luz
E tudo o que não pude ver
Há na frente apenas morte e desolação
O resto de tudo o que não pude viver

O que há então?

Há somente a alma arrasada
Como uma cidade bombardeada
E não sabemos quanto é destruída
Porque só vemos a destruição
Há então sangue sobre a terra por nada
Há apenas desamor por tão pouco
Há infelicidade em tantos rostos
E desespero em tantos olhares
Há somente tantos desencontros
Há só uma busca que não se busca

Há apenas uma outra fuga
Mais uma estrada que leva a nada
Esse estranhamento meramente humano
Esse querer o que não me pertence
Esse poder de tomar o que não é seu
Essa capacidade de não olhar o outro
E de estranhar o que vê em si mesmo
Esse lugar ermo a que nos condenamos
Há somente a solidão como uma jaula
E nosso olhar atônito para uma porta aberta

Há somente essas palavras que sobreviverão
E prevalecerão sobre todos os nossos dias
Há somente tudo o que há para se compreender
Mas nunca haverá nada para esquecer
As palavras e as lembranças também morrerão
Junto com as horas que haverão de acabar
Juntos com todos os sonhos desvanecidos
Junto com toda a matéria dissipada
E toda a angústia da sabedoria
Irá se revelar nada, somente o nada

Então, ainda assim, o que mais há?

São Paulo - 15/05/2005 – 22:55

O que há não sei

Há um desenho
Que eu não fiz
Mas rasguei
Nele sou feliz
Não sei

Há vida
Que não tenho
Há amor
Que não tenho
Há esperança
Que não tenho
Há uma chance
Que não tenho

Há tudo o que não tenho
Que não cabe em um desenho
Rasgo todo dia tudo o que não tenho
Não tenho tudo que me faz feliz
Não sei

Há um sonho
Que eu tenho
Uma ilusão doce
Que eu tenho
Há tranqüilidade
Que agora tenho
Há uma palavra no silêncio
Que eu tenho

Há um desenho
Que desde sempre em mim
Eu tenho
Impossível de rasgar
E nele sou feliz
Não sei

São Paulo - 13/07/2005 – 9:19

Quem dera

Quem dera um canto num canto qualquer do mundo
Em que eu tivesse um tanto de paz
Silêncio nítido e profundo, fecundo
Num canto qualquer do mundo
Em meu rosto um encanto no meio do espanto
O silêncio de perdidos pensamentos
A mente cansada de mirar futuros instantes
E perder exatamente esses momentos
Com todos os seus significados tão inúteis
Quem dera fosse possível mesmo esse silêncio
Inatingível, imprescindível, inabalável
E o vazio dos pensamentos, sempre os mesmos
Possibilitasse nascer novos e renovados pensamentos
Quem dera sonhos em que as pessoas tivessem rosto
E passos com vida em caminhos de verdade
Quem dera a felicidade fosse possível
Tangível, verossímil, plausível
No apagar das terríveis lembranças
No morrer de todas as vãs esperanças
Quem dera livrar-se dos grilhões do tempo
Livrasse-nos do medo de estar vivo
E fizesse tomar a estrada da eternidade
Que nos leva a lugar nenhum e mais nada
Nada atrás ou à frente, nada na mente
Nada que exista realmente
Capaz de dissipar essa ilusão
Essa ilusão de estar vivo que cansa
E desespera no meio da madrugada
Em que a noite é só uma estrada
Que me traz de volta para esse lugar nenhum
Sempre, mais uma vez e sempre
E quem dera esse lugar fosse um canto qualquer
Num canto qualquer do mundo
Em que eu tivesse um pouco de mim
Bem lá no fundo
Onde ninguém me vê
Nem me conhece e nem me toca
Nem pode me ferir

São Paulo - 16/08/2005 – 20:13

Amo tanto

Amo tanto

Mandaram-me embora...
De todos os momentos que juntos vivemos,
Riscaram meu nome das histórias de antanho,
Terão queimado todas as fotos em que apareço?
E eu fui embora sem olhar para trás,
E ninguém me perguntou se ainda amo.
Ninguém quis saber se sobrevivo,
E nem lembrar que ainda existo.

E eu vou andar como uma sombra,
Preso aos momentos que não se esquece,
Reescrevendo histórias de antanho,
Numa história que não acontece.
Olhando para frente quando ninguém passa,
Amando mesmo que ninguém me pergunte,
Sobrevivendo sem que ninguém saiba,
E existindo mesmo que ninguém lembre.

Numa foto em que apareço sozinho,
Há tanto mundo atrás, mais do que se pode ver,
E tanto mundo na frente que ninguém vê,
Mas que eu via na hora da foto ser feita.
Tanta gente que passa alguém me perguntará,
E vou sobreviver e alguém terá que saber,
E só por existir alguém vai lembrar.

E sobre amar já não há mais o que falar,
São momentos dos quais não se esquece,
Quando acontecem rescritas histórias de antanho,
Em novas histórias que nem percebemos acontecer.
Tanto mundo na frente e gente que passa,
E me pergunta como sobrevivo e lembra que existo,
E eu amo tanto que alguém vai ter que saber.

São Paulo - 16/06/2005 – 18:49

quarta-feira, setembro 19, 2007

Poema para a Voz do Vento

Seus cabelos ao vento voam a tempo,
Eu não sei o momento,
Sei que invento o vento e o tempo dentro do tempo!
Seu rosto triste ao vento,
Tiram-me o intento do que não invento a tempo
De você sorrir, só rir, rir
Suas palavras soltas ao vento,
Eu mesmo tento ser uma palavra solta que não invento, tento!
Sua solidão é um vento que alguém inventa,
E nem ao menos tenta soltar-se a tempo
Sua tristeza é um tempo a dissipar-se ao vento
Bem a tempo dissipar-se
Há tanta poesia no vento e eu mesmo bem que tento, tento!
Eu mesmo tento estar atento ao vento,
Que me traz suas palavras perdidas, soltas ao vento, presas no tempo
Suspenso no tempo voa um vento,
O tempo não passa de um momento
Sua alma alada acorrentada à rocha de um triste tormento
Por que não voa mais ao vento?
Sua voz calada e cansada, por que não grita a tempo?
Enquanto há intento...
Enquanto eu tento ouvi-la ainda,
Com o sussurro do vento?
Vai-se o vento e a voz
O que será de nós?
E se agora cala no tempo o vento do sussurro de sua voz,
O que será de nós?
Amantes de palavras soltas ao vento sem nenhum intento,
De sacadas de madrugadas povoadas de tanto silêncio, sem vento!
A voz do vento no sussurro do tempo, um intento sem tormento,
Um instante sem voz: o que será de nós?
E o que será da voz de quem nunca ouvir o vento,
Nem por um momento perdido no tempo?
E haverá ainda tempo em que se possa ouvir o vento quando a alma alada não voa? Voa?
E voará ao vento alada alma acorrentada ao rochedo inexpugnável do tempo? Vento!
Ventos e vôos solitários de almas cansadas ao relento, sem nenhum intento...
Aladas acorrentadas cansadas e desesperadas almas sem vento, sem vento!
...e sem intento no que invento em madrugadas de sacadas enluaradas!
Eu bem que tento voar ao vento nem sempre a tempo, eu tento!
Eu bem que tento ser como o vento que não tem direção,
Só tempo de voar para onde me manda o coração! Onde?
Onde é que me manda?
Me manda o coração voar no vento no encalço de todas suas palavras caladas... no vento!
Então eu ponho minhas palavras ao vento para perderem-se bem a tempo...
Bem a tempo de encontrarem suas palavras caladas no tempo!
Não posso ouvir o sussurro de sua poesia calada e sem vento
Acorrentada num tempo em que tudo se cala a tempo,
De não dizer o que não pode esconder e revelar o que o vento, só vento pode espalhar...
Seus cabelos assim soltos ao vento,
Suas palavras presas no tempo bem a tempo de calar
Sua voz ao vento num tempo de clamar
Se matam o vento, se calam a voz,
O que será de nós?

Vai

Vai, leva seu corpo
E me deixa morto
Nesse meu lugar que é o chão
E nessa vida que é solidão

Leva cada meu olhar
E cada lembrança que vai voltar
De que nem sequer lhe ver
Deixa essa vida que é como morrer

Vai, e me esqueça
Por incrível que pareça
Eu nunca vou estar bem
Com o querer o que não se tem

Vai, leva o que nem me deu
Deixa-me como quem morreu
Apague cada meu sonho
Depois de morto eu me recomponho

Vai, leva essa amanhecer
E essa capacidade de esquecer
E deixa-me aqui como encantado
Como uma sombra ao seu lado

Vai, agora que já morri
Não sei sentir tudo o que senti
Sentir é tudo o que padeço
E sem você, viver é tudo que esqueço

(18/10/2006 – 19:43)

Desolação

Seu cheiro pela casa
Sua ausência chega, entra e se instala
Há ecos ainda de seu sorriso
Reflexos de olhares seus nas paredes da sala
Vejo você com o rosto entre as mãos
Enfeitando a bagunça dos livros na mesa
E debruçada na janela displicente
Adivinhando minhas paisagens
Ainda está ali o seu calor na cama
O perfume de seus cabelos no travesseiro
Tem muito de você no abraço da poltrona
E no sofá tão pequeno no qual nem cabe
Tem uma lua olhando você na sacada
E uma escada que lhe traz à porta tão burra
Que não sabe nunca que é você que chega
Porque se soubesse já se abriria lisonjeira
A toalha vermelha mais do que eu tocou seu corpo
Meus chinelos depois de serem por você calçados
Nunca mais me quiseram
Os papéis perguntam de você
Os poemas falam só de você
E um parque fica lindo quando vê você
E em tudo tem tão pouco de mim, sem você
O trem que leva você gargalha nos trilhos
Maldito comboio de duro e frio ferro
E o trem que lhe traz se arrasta com inveja
Cada madrugada se cala
Como cada hora que é eterna de solidão
Quando a rua vazia avisa: você não vem

11/10/2006 - 11:25

Um dia depois de minha morte

Um dia depois de minha morte
Sair e me divertir
Ouvir todo o Creedence
Dançar e beber até cair
Esquecer que o dia amanheceu
Nublado e triste, é só um dia!
Nunca mais lembrar o que se esqueceu
Quem sabe até sorrir

Um dia depois de minha morte
Trocar de roupa e sair sem me vestir
Sair sem sentir que a vida existe
E insiste em brincar comigo
Brincar com ela outro meu jogo
Jogar fora penas mortas de asas quebradas
E teimar tão tolo por essas mesmas estradas
Deixar você deixar eu pensar que consigo

Um dia depois de minha morte
Tentar achar que sou forte
Atropelar todos os buracos do caminho
E andar agora só se for sem norte
E perder-me só se for sempre sozinho
Sentir-me tão estranhamente leve
Que o tempo me carregue
Desde que eu possa voar

Um dia depois de minha morte
Querer só o que for preciso
E fazer somente o necessário
Pensar só que não racionalizo
E para falar, falar só o contrário
Um dia depois não deve ser tão triste
Viver um dia depois de minha morte
A vida antes é o que não existe

Um dia depois de minha morte
Tomar um banho e lavar a alma
Com toda a raiva sentir toda a calma
Rastelar pensamentos ao pentear o cabelo
Prostrar-me no fogo de viver nu em pelo
Fechar as janelas e trancar as portas
Ir ao funeral das últimas folhas mortas
Saudar a chuva lá fora como num dia de sorte

Um dia depois de minha morte
Queimar os livros e matar esperanças
Rasgar desenhos e poemas que não vieram
Enterrar quase todas as lembranças
E vender na praça todo o carinho que me tiveram
Apagar da poesia a última chama acesa
Não ser nunca mais o que de mim esperam
E encher de alegria toda essa tristeza

Um dia depois de minha morte
Esquecer de vez que tentei viver
Viver o que não sei poder esquecer
Matar de vez o que me mata aos poucos
Esperar nascer novas penas
Nas asas que se refazem
Voar além de todas as coisas que jazem
Nisso afinal que era vida apenas

Um dia depois de minha morte
Arrancar o coração com as mãos
Um dia depois de minha morte...


(12/10/2006 – 16:10)

terça-feira, setembro 18, 2007

Para ficar sem você

Para ficar sem você eu troco os lençóis da cama, escovo os dentes, penteio cabelo, calço as sandálias, ando pela casa, abro as janelas e olho dia. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu tomo um café preto e acendo mais um cigarro, ponho água na samambaia, varro o chão, lavo a louça de ontem, faço um macarrão e mato a fome e a sede. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu ponho a roupa de molho, água no filtro, arrumo os livros na estante, não ouço música e nem leio poemas, para ouvir ainda mais o silêncio. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu mantenho os papéis e livros sobre a mesa, atento a uma sorrateira inspiração, não escrevo cartas, não telefono, não saio de casa nem para ir à padaria ou à farmácia, recosto-me na poltrona e fico vendo a dança das árvores com a música do vento e cochilo. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu corto as unhas e limpo as orelhas, procuro não sei o que nas gavetas, reviro as caixas no armário, dobro as roupas sem passar, para passá-las sabe-se lá quando e passo o dia sem fazer nada. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu escolho os pensamentos, não pronuncio seu nome na mente, nem o escrevo nas paredes ou nas árvores do parque, leio quadrinhos, olho a rua pela décima vez, o céu azul por detrás dos prédios, procuro uma palavra no dicionário. Para ficar sem você.

Para ficar sem você invento motivos, evito lembranças, elimino esperanças, imagino desculpas, adivinho respostas e não faço absolutamente nenhuma pergunta, nem as mais imprescindíveis, nem as inevitáveis, nenhuma. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu aprendo a morrer quando o dia amanhece, e não viver o que não se esquece, não acreditar no futuro e sentir intensamente o que é somente o agora. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu escolho palavras, ensaio gestos, disfarço expressões, dispenso impressões, entrego-me a uma só emoção e invento e reinvento todo dia toda a solidão. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu olho a rua e a porta (e tudo o que não se mexe), contemplo paredes sufocantes, piso um chão incandescente, tomo um banho escaldante, eu penso em tudo como era antes, exumo momentos distantes, ouço violinos fictícios, deixo-me hipnotizar pela respiração. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu aceito o impossível, creio no inexplicável, entrego-me ao insustentável, sobrevivo ao insuportável e nego tudo o que me é negado. Para ficar sem você

Para ficar sem você eu aceito o inesperado, espero o inaceitável, encaro o inevitável, pasmar diante do inconcebível, concebo o impossível. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu vejo a tarde cair fresca e entrar pela janela, sinto as horas passarem apressadas indo dar no meio de nada, e mesmo com todo o medo, sinto o tempo devorar a vida, até que mais nada se possa pensar ou fazer a tempo. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu sei que tenho que saber ignorar todos os telefones públicos, ter uma péssima memória para números, uma desorientação para lugares, ter uma estrita disciplina para ir aonde somente tem que ir e não saber nunca procurar. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu aprendi a escrever no escuro, tive que esquecer todos os caminhos, abrir mão de todas as manias, isentar-me de todos os caprichos, tive que me importar muito pouco comigo mesmo. Para ficar sem você.

Para ficar sem você não vou a duas festas de três e nem a terceira, dispenso o convite que a noite me faz para dormir, entrego-me à madrugada – essa tão má companhia – a andar a esmo, pelo simples gosto de perder-me. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu equilibro no ar histórias da infância, com pipas em céus azuis, mundos distantes nos quintais, e ando na corda bamba dos sonhos da mocidade, um coração de sete andares – e tantas moças, suas moradoras -, as noites e os bailes e uma música apropriada para cada lembrança. Para ficar sem você.

Para ficar sem você eu tenho que tão perto me fazer bem distante, aplacar todo o desejo, apagar de qualquer sentimento toda a chama, querer nada e contentar-me com tanto nada e esvaziar-me ainda mais, tenho que ser o que não quero e querer o que não sou. Para ficar sem você.

Para ficar sem você há Beethoven e Vivaldi e seus violinos, há dentro de mim um menino, meus brinquedos preservados no sótão de todas as lembranças, todos os contos de fadas que falam de esperança, um porão de sonhos escondidos, um terreno baldio de segredos ajuntados, há um eu olhando do topo da vida para o outro lado. Que não tem nada. Para ficar sem você.

Para ficar sem você, eu vou ficando, fazendo tudo como se faz, como se fosse para ficar sem você; vou sonhando, sorrindo à toa, dançando, cantando, vou esperando amanhecer um dia, passarem as horas, vou brincando de esquecer, vou achando que tudo que faço é para ficar sem você, vou aquietando meu coração acelerado, vou pondo tudo de lado e vou sentindo que estou fingindo que estou mentindo que é tudo para ficar sem você.


28/10/2006 - 11:41