quinta-feira, março 27, 2008

Essa noite não

Essa noite não tem poesia
Tem um corpo cansado jogado no leito
Essa noite não tem inspiração
Tem a mente atordoada olhando o dia
Tem esse asco de viver o que foi desfeito
Esse cansaço tão descaso de alguma paz
Esse entorpecimento regado de melancolia
Tem esse juntar de cacos do que não se refaz

Essa noite não tem descanso
Tem essa tosse rouca a romper o peito
Um cigarro queimando adormecido
Esse desespero ermo na escuridão
Essa noite não tem o remanso
No repouso da beleza do que não foi feito
Tem o coração pulsando endurecido
A alma adormecida de solidão

Essa noite não tem desejo
Tem o recato de uma fúria tão contida
O ódio domado, aprisionado em nenhuma prisão
Tem tanta luz de tudo o que não vejo
Tantos sonhos áridos e estéreis de imensidão
Tem um resto de vestígio do que foi vida

Essa noite não tem inspiração
Tem o esquecimento dos passos e da estrada
Essa noite padece de revelação
E passa incólume sem revelar nada


31/05/2006 00:38

segunda-feira, março 10, 2008

Eu não vou amar você amanhã

Eu vou amar você
Até que o sol apague
Até que o mundo acabe
Até que o mar seque
Até que Deus peque
Mas não até amanhã
Amanhã é sábado
E eu vou ver o dia amanhecer
E ele vai amanhecer sem você
E vai ser lindo de se ver

Porque ainda que o sol apague
E o mundo acabe
Ainda que o mar seque
E Deus peque
Amanhã é sábado
Vou ver o dia amanhecer
E ele vai amanhecer sem sofrer
E vai ser lindo de se ver

Ainda que o tempo me devore
Ainda que a solidão me engula
Ainda que o amor apodreça
E a humanidade me esqueça
Amanhã é sábado
E vou ver o dia sem você
E vai ser lindo amanhecer
Vai ser lindo de se viver

Eu vou amar você
Até que toda palavra desapareça
E toda a inútil poesia feneça
Até toda esperança sucumbir
Até toda a fé sumir
Até todo silêncio imperar
Até que o mundo inteiro me esqueça
Até que toda a vida pereça

Mas não amanhã
Amanhã é sábado
E vou ver o dia amanhecer
Façamos um sarau agora
Pode ser que não veremos a aurora
Então façamos tudo agora
Debaixo das estrelas
Façamos toda a poesia agora
Vai ser lindo não amanhecer
Um réquiem!
Por favor, um réquiem!
Não veremos a aurora
Vai ser lindo
Não amanhecer

São Paulo - 22/04/2005 – 07:43

Há que se fazer poesia

Há que se fazer poesia como quem larga a torneira aberta
Há que se viver como quem se deixa ao sabor do vento
Há que se amar como quem solta o freio na ladeira
Há que se tocar em frente, mesmo para dar de cara com o muro
Torneira aberta, vai sair água, muita água
E vai sair mais água e tudo o que ela trouxer

Assim é a poesia, é só abrir e deixar escorrer
Os pensamentos são como água
Nada há que os represe por muito tempo
É só deixar fluir tranqüilamente
Há muito vento e tantas ladeiras
Em nossa vida cercada de muros

Um pensamento, um balão, uma pipa
A asa de uma gaivota, uma nuvem branca
Uma montanha ao longe, a chuva caindo
Aquela lembrança da infância, distante
As doces ilusões de tudo ser tão mágico
As tolas esperanças de tudo ter um final feliz

Queimar-se ao sol, sujar-se de barro, subir numa árvore
Extasiar-se diante do colorido esvoaçante de uma fogueira
Pular o muro da escola, encapar livro novo
Aprender uma palavra nova, depois mais outra
Saber o nome dos planetas e as capitais dos países
Desenhar com esmero mapas do tesouro

Ser capaz de perceber o que é um brinquedo
Tocar guitarra com uma vassoura
Entrar na quinta série e sentir-se adulto
Aprender a andar de bicicleta
E o primeiro e infalível tombo
E ter enfim algo para nunca esquecer

O primeiro olhar trocado, apaixonado
Aquela sensação ofegante no peito
Pensar o tempo todo no novo amor
Perder a fome, o sono e a vontade de viver
Não querer mais sair na rua
E parar o tempo ali para sempre

O primeiro toque na mão, um aperto
Dançar a primeira vez, colar o rosto
Corpos tão próximos, o que é um beijo?
Vai acabar a música, mais um abraço
Vai acabar o baile e a noite
Vai acabar o mundo

E tudo o que era poesia
O que agora seria?
E tudo o que era água
Com vontade escorria
Quem mudou o mundo?
Quem fechou a torneira?

São Paulo - 17/05/2005 – 22:45

Tenho medo

Tenho medo de acordar no meio da madrugada
E descobrir relutante que amo você
E de que sua ausência seja tudo o que eu tenha
Tenho medo de não poder viver sem você
Então não vou dormir mais nenhuma noite inteira
Ao despertar esse amor vai me perseguir
E me assombrar nas horas mais inconvenientes
Em toda a parte vai ficar ali latejando
Como uma dor daquelas com as quais a gente se acostuma
E deixa ali a doer dentro do peito até esquecer

Tenho medo de estar parado no meio da vida
Tentando entender por que o amor não morre
Ou por que simplesmente não vai embora
Fica aqui assim do meu lado sem me querer
Fico tentando saber por que é metido a eterno
E por que tão somente não acaba para mim também
Por que não é coisa dada a ser esquecida
Não sei por que tem que deixar marcas
E me fazer sempre seguir seu rastro
Misturado sempre aos meus passos

Tenho medo de essa estrada não dar em nada
E de todo o tempo ter vivido inutilmente
Acreditando em todas as verdades erradas
E sacralizando produtos de minha imaginação
As ilusões mais tolas e os sonhos mais impossíveis
Típicas de qualquer reles ser humano
Que precisa inventar uma eternidade para fugir à morte
E criar um deus para viver eternamente
Que precisa de outra vida para ser melhor do que essa
E de um ser intocável para não sentir a dor de si mesmo

Tenho medo de essa força não ser suficiente
E todo esse medo detestável embrenhar-me mais no labirinto
E toda essa vã e inútil esperança carregar-me para bem distante
Tenho medo de não estar vivo mais uma madrugada
E de não poder encarar a força impoluta de mais um instante
Que traz o inevitável futuro que aos poucos me consome
Tenho medo da eternidade justo agora se fazer acabada
De todos os mundos do universo ser só esse vazio no peito
Tenho medo de olhar no espelho e não ver nenhum rosto
E de no espelho seu rosto enigmático me esquecer o nome

Tenho medo da hora da solidão não ser derradeira
E dessa tristeza lancinante ser assim próxima do infinito
Tenho medo de todo esse silêncio como coisa inesgotável
E de meus olhos estarem mirando apenas luzes mortas
Tenho medo de minha alma estar perdida no tempo
E de que o avesso absurdo dessa ilusão seja a realidade
Tenho medo de todas essas sensações abeiradas da verdade
Desse pasmo na escuridão ser toda possível sabedoria
Tenho medo então da vida como coisa assim tão fugidia
E de ser assolado pela morte que vem como ave de rapina

Tenho medo de apagarem-se todas essas minhas lembranças
E de súbito esquecer-lhe o rosto, o nome, os gestos, as palavras
Tenho medo de todo amor intangível e impossível nunca mais acontecer
E dessa tristeza que aqui se instala fazer parte de mim
Tenho medo de confundir para sempre os passos e os sentimentos
De todos os meus pensamentos amedrontados desistirem de ser
Parte importante de mim que me diz o que quero e o que é meu
Tenho medo de tudo o que é novo nessas tolas esperanças
E de tudo que já é assim tão velho nessa indisfarçável solidão
Tenho medo de gritar em vão numa vida que já não me pertence

Então, de repente, paira o absurdo silêncio
E reina, soberana, a insuportável solidão
E sinto-me repleto desse imenso vazio
Completo de todas essas coisas que faltam
Buscando covardemente só o que se acaba
E a vida vai se eternizando de nada
E eu vou agonizando ermo, de medo...


São Paulo - 10/04/2005 – 12:20

Você vindo finalmente

Eu vejo você vindo finalmente
Seus cabelos dourados ao vento
E a tez alva e suave
Pisando a relva como quem flutua
Tal como elfo trazendo seu fogo
Para reviver-me a alma
Pneuma que quase se esvai

Vejo você vindo a tempo
Quando estou à beira do abismo
Arrancar-me do ventre da terra
E do meio dos homens
Para atirar-me ao meu destino
Um ser de asas pairando no infinito
Em meio a todas as imensidões

Eu vejo você vindo magnífica
Rompendo todas as distâncias
Anulando todas as potências
Trazendo-me nova luz para os olhos
Um sonho dentro de outro sonho
Um medo novo excitante
O mesmo pasmar em uma noite diferente
Alguma paixão muito mais estranha
Um amor talvez menos revoltante

Vejo você vindo como uma brisa
A abrir-me todas as janelas
A espalhar as mesmas migalhas
Que vivo juntando nos cantos
A tirar-me as roupas
E eriçar-me os pelos
E penetrar-me os poros
Fazer-me prostrado
E habitar-me a carne
E a possuir-me a alma

Vejo você vindo num instante
Em que me distraio dos pensamentos
Num vazio qualquer da mente
Quando esqueço todas as verdades
Quando não penso em mim mesmo
Quando esqueço quem eu sou

Vejo você vindo numa tempestade
Que me arrasta para longe da realidade
E me queima num inferno só meu
E me sepulta em todas as cavernas
Que me expulsa de todas as casas
E me joga em todas as ruas

Vejo você vindo misericordiosa
Vejo você me trazer tanta piedade
E um olhar terno que arranca toda a dor
A dissipar angústias e medos
A estancar lágrimas e romper segredos
Vejo você vindo como um alívio
Um bálsamo para a ferida no coração
Uma cura para a dor da vida
Dor do viver

Vejo você vindo num sorriso
Trazendo os raios de um novo sol
Fazendo brotar das cinzas
Todas as esperanças assassinadas
E todos esses sentimentos desencontrados
Fazendo um certo sentido só no vazio
E existindo inutilmente só na escuridão

Vejo você vindo pisando as flores
De todos os campos que não quis ver nascer
Reflorescendo antigas alegrias
Fazendo brotar vontade de viver
E novas cores para os sonhos
Outras ilusões insuportáveis
No meio de uma realidade mais desejável

Vejo você vindo numa noite serena
Em que o silêncio foi maior que tudo
Acalmando-me os pensamentos
Tranqüilizando-me as emoções
Um regaço na eternidade
Trazendo-me descanso

Vejo você vindo num êxtase
Ao meu lado como num encanto
Uma barca num lago brumoso
Suave balanço de uma nova vida
Todas as distâncias cobertas de bruma
Todos os caminhos no esquecimento

São Paulo - 14/04/2005 – 9:51

Talvez precise...

Talvez precise de outro sol
Outro mundo e outras estrelas
Outro sistema
A realidade que imaginava tão parmenídica
Tinha que ser assim tão heraclitiana?
Não preciso de Neruda, preciso de Nietzsche
Não preciso de Bilac, preciso de Sade
De Rimbaud e Artaud
Não preciso da Bíblia, preciso do Kama Sutra
Nem do céu que me cobre
Preciso do chão abrir sob meus pés
Preciso de todas as profundezas
De estar enterrado e não voando
De estar gritando e não sorrindo
De estar doente na cama e não dançando
De estar odiando e não amando
Não preciso de bossa nova e nem de rock’n roll
Preciso de mil trombetas demolindo o céu
E da fúria de mares estranhos
E de todo o terror vindo das entranhas
Não preciso de brisa de um céu azul
Mas de um furacão que arraste as migalhas
E carregue para longe esses pensamentos
Não preciso de paz de espírito
Preciso de um espírito que não encontre paz
Não preciso de sorrisos
Mas de presas cravadas no pescoço
E fome de carne e sede de sangue
Preciso do que me falta, tudo
Não do que me sobra
Não preciso da alma imortal
Mas de uma fúria animal
A manter-me vivo e fazer-me forte
Não preciso de sonhos, ilusão ou esperança
Preciso das horas passando
Do tempo que me devora
Preciso de toda essa vida
A cada momento me matando
Não preciso de piedade
Preciso que me agridam
E me violentem
Que me pisem ainda mais
Para eu perceber a dor
E a indignação
Preciso de reação, não de ação
Preciso da carne do corpo
Não de paixão
Não preciso de oração
E nem de proteção
Preciso de desamparo
E que praguejem contra mim
Todas as infâmias do mundo
Que me lancem maldições
Não preciso de liberdade
Mas de uma prisão confortável
Não preciso de companhia
Mas de alguém comigo na solidão
Não preciso de salvação
Mas sim de uma justa condenação
Me perder ainda mais
Em todos os becos onde me enfiei
De estar fadado a vagar pela eternidade
Não preciso de Madre Teresa
Preciso de messalina
Não preciso de namorada
Esposa ou amante
Preciso de uma puta
Que me diga as mentiras que preciso ouvir
Já que as verdades dão no mesmo
Preciso de uma mulher que não me ame
Mas que não viva sem mim
Não preciso de felicidade
Não preciso de satisfação
Preciso me saber tão infeliz
Preciso de uma carência por que me apaixonar
Preciso descansar
Não preciso de outra vida
Preciso apenas de uma morte mais digna

São Paulo - 03/04/2005 – 14:10

Eu amo porque você existe

Eu amo porque você existe
E para amar nem preciso
De maior ou melhor motivo
Preciso de um instante
Em que possa encontrar
Seu fogo de existir
Raios em seus olhos
E trovões em seu peito
E silêncios em seu coração
E sua alma calada
A andar todos os desertos
Parar diante do estrondo
Do clamor de minha alma perdida
Eternizar o instante
E o encontro
Arder no fogo de sua vida
Perder-me na luz de seu olhar
Ouvir em seu peito minha própria voz
Palavras do silêncio de seu coração
E minha alma calar mais a sua
Tudo o que nem se precisa dizer
Quando caminharem esse deserto
Quando esse deserto for pleno
Quando esse deserto for amor

30/06/2005 – 17:08