terça-feira, outubro 31, 2006

31 de outubro de 2006 - TERÇA-FEIRA

Sinto sua falta, estou com saudade de você. Frases mais do que simples que expressam o que, afinal? Sentimentos protocolares, ou aquele tipo de sentimento ao qual estamos acostumados. Eu poderia dizer que sinto falta de sorvete napolitano ou que estou com saudade de pegar a estrada e ir para uma praia sossegada. Só que eu vivo muito bem certo tempo sem napolitano e sem viajar para a praia. No mais, não é todo dia que penso em sorvete e algumas vezes dispenso ir a praia.
Então, para entender bem esses sentimentos tão protocolares, esse modo tão comezinho de sentir as coisas, esse mero sentimento ao qual não prestamos atenção, percebi que hoje acordei pensando em você. E com saudade. Mas ontem também. E anteontem. E algo me diz que amanhã será mais um dia em que pensarei em você. E sentirei saudade.
Sentir sua falta é algo tão medonho que o que me resta é contemplar as lembranças dos momentos em que estivemos juntos. Eu vejo seu corpo jogado na cama, lendo algum dos textos sobre os quais resolvemos que temos que saber. Vejo seu rosto emoldurado pelos cabelos e tudo isso com o fundo preto da poltrona. Lembro seu sorriso sempre como um raio de sol que entra e se espalha iluminando o apartamento, e cada seu toque como aquela leve brisa que invade a sala num domingo à tarde. O som da sua voz ecoa sempre em alguma reminiscência minha, auditiva, a confundir com os sons de violinos das sinfonias que mais gosto de ouvir.
A sua ausência é a coisa mais real que conheço e eu invento uma sua presença.
Eu me pergunto, enfim, se tudo isso, ou algo disso, é amor. Esse esquecer-se de mim mesmo quando você está e esse ser nada quando você não vem.
Essa carta não precisava de tudo isso, não precisava de tanto. Bastaria eu dizer “eu te amo”. Apesar de ser essa coisa ou tão banalizada pelo uso ou simplesmente fora de moda quanto ao significado, diria tudo, para alguém que não tem por que banalizar ou esquecer o significado de certas coisas.Isso é uma coisa. O amor mesmo. É uma coisa. A única coisa que eu tenho.

quarta-feira, outubro 11, 2006

11 de outubro de 2006 - QUARTA-FEIRA

Fui escrever mais uma carta, saiu um poema, saiu na frente, nas folhas do caderno. Saiu como se quisesse me arrancar de dentro de mim. Eu menti na carta de ontem, descumpri o prometido, não escrever mais cartas e nem poemas.
Não fui à universidade na segunda, para não ver você. Eu sabia que ia sofrer. Fugi com medo, fugi desse sofrimento inútil. E no dia seguinte não tivemos as duas primeiras aulas, fui para o bar jogar meus pensamentos e qualquer resquício de raciocínio em algumas partidas de xadrez e nenhuma conversa que me tirasse de tudo isso tão fundo em que me meti.
Fumei no hall em frente à rampa. Olhei para a biblioteca avisando minhas pernas que lá eu não iria, que não queria, menos do que podia. Desci a rampa em direção ao bar, comprar cigarros e tomar uma cerveja. O professor não veio, voltei para o xadrez e mais cerveja. Olhava a rua na esperança tola de você aparecer. Então tive medo disso e ali fiquei, matando também as duas últimas aulas. Queria ir embora logo, antes que acontecesse o que eu não queria.
Seus colegas de sala chegaram e suspirei aliviado, você tinha ido embora. Foi quando resolvi ficar. Mas você apareceu, dizendo que era aniversário do nosso amigo que ali estava. Mas não o cumprimentou e podia ter feito isso na sala. Você foi e ficou menos de meio minuto.
Dei-lhe a ultima carta e depois fiquei tentando lembrar o que tinha escrito. Com a última foram todas as outras que tinha escrito, para que desse a elas o fim que bem entendesse.
Lembrei-me da conversa ao telefone e me senti um idiota (e não gosto desse adjetivo).
E agora depois do almoço sei que o telefone não vai tocar. E depois sei que se vir você vai ser por acaso, ou se não for vai ser por tão pouco tempo. Dormi no metrô e perdi minha estação, tive que ir para casa um bom pedaço a pé, e não gosto de andar com certos estados de espírito. Subi a Av Águas de São Pedro, virei na Nova Cantareira, desci a Leôncio de Magalhães para pegar meu apartamento de frente, nenhuma luz acesa em nenhuma das janelas. Que acontece sempre comigo de me nascer uma tola esperança de imaginar que lá você estaria toda vez que eu chegasse. Não estava. Dormi tarde, acordei tarde e tudo tem sido tão tarde em minha vida, que me sinto cansado.
Cansado a ponto de não poder dormir. Nem um pouco.
Esperando, sempre esperando. Esperando que tudo não passe de um sonho ruim e que eu acorde e veja isso, que o sonho ruim acabou.
E acho que você foi ao bar para me ver. Mas queria ver que eu estivesse bem, para confortar-se em algum seu sentimento de culpa ou gratidão, todos os dois desnecessários. Foi ver se eu estava bem, para poder confirmar sua decisão, para poder sentir-se isenta da responsabilidade que nunca lhe imputei. Foi ver se eu vivia, se eu sorria, se eu esquecia.
Só não viu que eu fingia viver, fingia sorrir, fingia esquecer. Para você poder seguir seu caminho sem que eu pesasse sobre você.

terça-feira, outubro 10, 2006

10 de outubro de 2006 - TERÇA-FEIRA

Eu tinha prometido não mais escrever cartas. Eu tinha prometido não prometer. E, principalmente, eu tinha prometido não descumprir promessas. Mas eis que me prostro aqui diante dessa ânsia que deve vir do teclado, essas letras fora de ordem, pedindo para fazerem algum sentido, ou juntarem-se para fazer sentido nenhum. Agora já não me importa. Rendi-me ao feitiço e à maldição de me enredar pelos meandros do que as palavras querem dizer ao mesmo tempo em que querem esconder.
Então não continuamos. Tudo que era tão bom não continuamos. A vida é mais real que o amor e tem que ser vivida, atendida, satisfeita. Os afazeres, o ter, o ser, o poder, o dever. Esconder-se sob uma fachada vazia de sentimentos, os sentimentos não importam, os sentimentos não contam, eles atrapalham a vida real que tem que ser satisfeita, realizada, em primeiro lugar, antes de tudo o mais.
O que eu queria dizer ao telefone foi tudo o que eu não queria dizer mas que era somente o que havia para dizer. Muda alguma coisa falar de mim para você? Todas as decisões estão tomadas implacavelmente, inapelavelmente. Irreversíveis. Então não posso ainda colocar-me diante de você assim simplesmente, com o “ainda há pouco” no encalço de cada meu passo, meus pensamentos e lembranças. Não posso ver você sem ver você. Posso não ver você mesmo sabendo que não posso esquecer você. Mas ver você, agora, se não esqueci quem você é, a pessoa que mora em você.
Estou triste sim. Avisei que estaria. Estou mal. E estou assim sozinho, sem a ajuda de ninguém, e sem o devido estorvo. Estou triste e sozinho com as reminiscências tão doces do que tudo passamos. E que passou. Enquanto eu fico.
Você não pode me oferecer ajuda. Isso significa que terá que me ajudar. E nem pode me consolar, preocupar-se comigo, talvez sentir pena ou uma espécie de obrigação advinda da gratidão. Isso significaria que você teria que ser você para mim.
E tudo isso é o que você agora não quer.

sexta-feira, outubro 06, 2006

06 de outubro de 2006 - SEXTA-FEIRA

Agora vai ser assim de eu ficar conversando por cartas daqui dessa ilha em que naufraguei. Somente para contar os dias, as horas, os pensamentos, tudo se tornando todo o tempo que nos devora e nos contém. Tudo o que se tem, um tempo eterno naufragado numa ilha distante.
Ontem cheguei cedo, como sempre, na universidade. Fui à minha sala e guardei a bolsa e saí para andar e fumar, beber água, ir ao banheiro, como sempre. Da rampa olhava em direção à biblioteca, onde você deveria estar e aonde não fui. Alguma coisa não aconteceu (como não tinha que acontecer), como sempre.
Fui ao bar tomar uma cerveja e sempre tem uns amigos, mesa, cadeiras, copos e garrafas, fazendo parte daquele rol de coisas que nunca faltam em nossas vidas. Talvez um dia possa faltar um ou outro amigo, mas não sei se todos. Um bom papo, mas o relógio que torna o tempo mensurável e perceptível, acessível, e implacável, cobra entrar para ver mais uma aula de estética. Para a qual levo o meu adversário no xadrez, com a intenção de que matássemos as duas últimas para umas boas partidas. Joguei cinco e ganhei todas. Só dão certo as coisas que não interessam tanto.
Não consegui evitar pensar em você. E pensando se acaso você fazia o mesmo. Mas acho que não. Depois da nossa última conversa, acho que não. E talvez seja mesmo melhor eu achar que não.
Aí eu pensei em sábado. Como fazer para não esperar você vir. Ou esperar você não vir. Tanto faz! Esperar é tudo o que vai me restar e esperar é tão duro, é tão sofrível. Vou disfarçar o dia todo e o fim de semana todo e toda a semana que o separa do próximo fim de semana e você não virá.
Terminadas as partidas de xadrez no bar, e esvaziadas algumas garrafas e algumas conversas, hora de ir embora. Hora de me enfiar no trem. Hora de pensar quanto de minha vida fica nos trens, quanto de minhas recordações, de minhas mais tolas esperanças se fizeram nos trens que vão e vêm. Melhor sentar-me e tirar um livro para ler e melhor ainda que seja Cortázar. O tempo passa mais rápido quando se lê no trem.
Ao descer dele eu o olho, como se quisesse entender melhor essa relação entre o trem e eu. Tão grande e perigoso, tão útil e inútil ao mesmo tempo. Subo as escadas das estações e percebo que subo lentamente, como que para não antecipar os sentimentos que têm que vir na hora certa. Mas sempre subverte essa disciplina uma tola esperança. Viro à direita no fim da escada e o parque se estende à minha frente e meu olhar e pensamentos passeiam entre troncos das árvores que não têm infância, como eu dissera em um poema que naquele parque fui buscar uma certa noite, em que você ficou em casa. Essa tola esperança me fez imaginar que a luz da janela da sala estaria acesa, mas não estava. Fez-me então imaginar que você tinha passado lá à tarde e deixado algum vestígio. Mas não passou. E essa tola esperança ainda sobreviveu ao imaginar que sábado você iria lá, mas não sei se vem e até acho mesmo que não vai.
Então eu fiquei imaginando um jeito de esperar. Um jeito de não esperar, todos os dois contra qualquer expectativa minha tão infundada. Esperar é simplesmente a ausência de qualquer fundamento.
Dormi lendo Cortázar. A madrugada acordou-me para um cigarro na sacada. Para ver que a lua continua ali, fiel e previsível, a passear o pedaço do céu que me cabe.
De resto, tudo foi falta de você. Que me fez sentir falta de mim.

quinta-feira, outubro 05, 2006

05 de outubro de 2006 – QUINTA-FEIRA

Cheguei ontem no apartamento mais aturdido que triste, mais triste que cansado. A porta pesada, uma eterna escada, a consciência de que tenho pernas, alguma coisa tenho. Pernas, essas coisas que doem e não me levam a lugar algum. O coletor de lixo já passou, aqueles sacos na varanda ainda ficarão por mais um dia a fazer-me companhia, a companhia de conviver com as coisas que jogo fora.
A mesa posta de papéis. Queria escrever um poema, não saiu, não veio, não nasceu. Então uma carta, ansiava a folha de papel almaço presa a uma pequena prancheta, ansiava por quebrar-me o silêncio para desvendar-me os segredos, saber dessa cara de quem comeu e não gostou. Nem poema e nem carta. Nem vontade de chorar por acaso me deu.
Só não deu para evitar os pensamentos que buscam em volta tudo o que não se tem, por não ter mesmo ou não poder ter. Os livros fechados num respeitoso silêncio.
Fome. Mortadela esquentada na frigideira com pão de forma, dois copos de refrigerante. Preguiça de fazer um café, nenhuma vontade de ingerir algo alcoólico. Um cigarro, este sim, fiel, não me falta. Um estar na varanda como em dias de outrora, estranhando o silêncio mais fora do comum, nenhum carro ou ônibus sobe ou desce a avenida, os vizinhos dormem e ninguém passa na rua. E isto tudo parece que a noite inteira.
Olhar em volta e fazer um inventário de tudo o que me falta. Falta-me somente você e tudo de seu que se torna impregnado no apartamento, em minhas lembranças e tão dentro do fundo de mim mesmo.
Eu tive que arrancar-lhe as palavras que hesitava me dizer, para minha ruína e infortúnio. Eu tive que responder as perguntas que lhe fiz, responder a mim mesmo, entendendo o que nunca diz e nunca vai dizer.
Eu vou esperar sábado você não vir. Vou esperar com uma devoção medonha estar errado em minhas esperanças, mais uma vez. E pode ser que não esteja. Então, finalmente, não vou ter mais pelo que esperar.
Eu acordo agora pensando numa razão e numa forma para deixar você em paz.
E fico fazendo túmulo do lugar onde moro, vou adivinhar que se vier sábado vai ser para me devolver as chaves e o olhar meu que lhe persegue. Se vier, vai ser para apagar o último candelabro, quebrar o último espelho, fazer-me esquecer as músicas que lembram você. Se vier será por não ter motivos para vir. E carregará consigo esses motivos.
E eu não ensaiei nenhum olhar e nenhuma palavra, gesto ou reação. Se você vier, não antevi nenhuma emoção. Eu vou ficar aqui adivinhando suas razões, suas desculpas e sua sempre infundada preocupação comigo. Vou tentar disfarçar ser digno de pena. Vou esconder esse grande medo de querer não querer ver mais você, sem saber por quê. Vai ser uma tentativa vã de esquecer, agora que não esqueço mais nada, por ter aprendido a não esquecer.
Tudo aqui se torna uma ilha e eu náufrago. Enviando mensagens em garrafas para o mundo imenso lá fora, terrível como um mar em fúria, onde ainda tento conduzir à esmo minha nau desgovernada.
Que encontrem as cartas e as leiam, mas esqueçam o náufrago que as escreverá sempre, esqueçam como uma vela que aos poucos se apaga. Ou como um farol que não indica nada e lugar nenhum. Esqueçam, é fácil esquecer.
Talvez um dia as garrafas com suas cartas falem de mim. Ou talvez esqueçam de falar de mim e falem de como é bela essa ilha e sua fauna e flora, seu único sobrevivente.

Talvez falem de algo que antes eu nunca ia conseguir dizer.

Todas as Cartas de Amor são Ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos